O MALHO E O CINZEL
by Immanuel
O Universo veio a se manifestar a partir de uma misteriosa vontade criadora. Ela se desdobrou em vários níveis, desde o centro, gerando todos os sucessivos planos de existência, até o nosso estado atual cristalizado na matéria. Tal afirmação surge a partir do testemunho de inúmeros sábios e mestres, que aperfeiçoaram seus sentidos intuitivos por longo esforço. Esse desejo por autoformação e evolução é inato a todos os seres, sejam eles sencientes ou não. Em todos os reinos, quais sejam o mineral, o vegetal, o animal, o humano e o divino, os seres avançam em um misterioso processo de autoconstrução e auto-organização.
Embora o universo físico caminhe para um estado de desordem, segundo as leis da termodinâmica, ao que parece, no plano mental, o contrário se processa. Se tudo o que permeia o universo possui o tecido mental, este parece estar se refinando e aperfeiçoando à medida que o mencionado tecido físico e concreto segue em constante desordem. Este refinamento mental e espiritual tem um avanço que se assemelha figurativamente a forma de uma espiral ascendente, a qual obedece a ciclos históricos que se repetem, porém com distinção.
Os seres tomam para si a tarefa de auto organização e auto aperfeiçoamento, regidos por um tipo de inteligência superior diretora – que está presente em todos – , e que fornece as diretivas corretas de acordo com a necessidade de aprendizado de cada ser. Sabemos que a evolução natural dos seres segue de acordo com as regras de aperfeiçoamento descritas por Darwin, e segundo Carl Jung, a mente – individual e coletiva – também segue evoluindo em um processo semelhante, aprendendo e se aperfeiçoando, e adaptando-se ao meio em que vive.
De onde vem a vontade de construir-se e melhorar-se é assunto a ser tratado por especulações metafísicas profundas e que dependem da particularidade intuitiva concernente a cada ser. O certo é que o anseio pelo autoaperfeiçoamento parece ser característica inata aos seres e pode ter sido incluído como chave essencial no drama da existência. Tal chave parece ser então o principal motivador para a ascensão dos seres a planos superiores de existência, que ainda fogem a capacidade perceptiva dos limites racionais dos seres humanos.
A Maçonaria é constituída por um sistema baseado em profundo simbolismo, que foi construído ao longo dos séculos a partir da percepção intuitiva das verdades universais da natureza. Nesse aspecto, a Maçonaria é aberta a todos aqueles que desejam se iniciar no mistério da construção do Templo Interno. A história Maçônica ainda está sendo estudada e escrita, mas as suas bases filosóficas estão muito bem fundamentadas, representando um magnifico sistema de aperfeiçoamento, oportunizando que os seus membros explorem um conhecimento iniciático antiquíssimo que os põe em contato com as leis fundamentais do espírito e da matéria. Tais leis da natureza, se investigadas com profunda meditação, revelam a ignota relação existente entre o plano concreto e os superiores, nos quais o espírito habita e do qual reverberam as verdades universais, no dizer de Hermes: “assim na terra como no céu”.
O esquema de referência simbólica Maçônico inicia com a abertura das portas do Templo Interno do Aprendiz na ocasião de sua iniciação. Neste impactante momento, o Aprendiz é induzido a um processo de reconexão com sua essência divina, visitando os interiores de sua consciência e renascendo para um novo ciclo de aprendizado e existência. O Aprendiz Maçom está apenas iniciando sua jornada montanha acima, e nesse caminho ascendente, deverá aprender a dar seus primeiros passos operando e fazendo uso de suas primeiras ferramentas simbólicas de trabalho: o Malho e o Cinzel, que expressam uma necessidade primordial a todo aspirante ao caminho da sabedoria, que é a formação e forja do próprio caráter, e da prática rotineira das virtudes, com a criação de um modo de vida austero e quase estoico. Estes instrumentos do primeiro grau refletem a primordial vontade criadora do desejo de autoconstrução.
O Malho (em francês mailiet, da antiga palavra francesa mail, ou ainda do latim maileus, significando massa ou martelo) é representado como símbolo sagrado em muitas culturas mundo a fora, e principalmente é associado à força de destruição ou transformação do raio celeste. É o instrumento do deus nórdico das tempestades, Thor (palavra escandinava que é uma contração de Thonar, e que quer dizer trovão), que era considerado amigo dos agricultores, pois anunciava as tempestades e a chuva, que beneficiavam a colheita e a fertilidade. É também o instrumento de trabalho, e iniciação formadora, segundo os gregos, com que a divindade grega Hefestos fabrica os utensílios e armas mágicas dos deuses olímpicos. O encontramos ainda na iconografia hindu associado ao deus Ghantakarma, como destruidor do mal e da ignorância; na mitologia japonesa, como instrumento da divindade Daikoku, que representa a riqueza e faz uso do martelo para criar ouro filosófico; ou ainda no gaulês Sucellus e no irlandês Dagda, que o utilizam como poder criador. Numerosos cultos indo-europeus se utilizam do Malho ou Martelo como símbolo solar ou do raio.
Curioso é ainda observar que algumas culturas fazem o uso do Malho no decurso de cerimônias matrimonias, fúnebres ou de iniciação de jovens. Talvez como símbolo do despertar da consciência que se evoca nestas pequenas iniciações.
Uma interessante lenda Lituana – talvez o último refúgio do paganismo puro em solo europeu – expressa bem o arquétipo primordial do Malho, que subliminarmente permeia as culturas mundo afora: outrora não se viu o Sol durante vários meses; um rei muito poderoso o havia capturado e aprisionado na fortaleza a mais inexpugnável. Mas os signos do zodíaco vieram em socorro do Sol; eles despedaçaram a torre com um martelo muito grande e assim libertaram o Sol e o entregaram aos homens; esse instrumento merece, portanto, veneração, pois através dele a luz foi dada aos mortais. Luz esta que derrete as neves do inverno e anuncia a primavera.
Com o Malho, e em conjunto com o Cinzel, o Aprendiz Maçom deverá “desbastar a pedra bruta”, traduzindo-se este ato simbólico como auto educar-se. A Pedra Bruta é o discípulo ainda tomado pela ignorância e por suas paixões egóicas. O Malho pode ser encarado com o mesmo modo operativo do machado de dois gumes. O ato de desferi-lo sobre o material requer o soerguimento inicial em direção à própria fronte do Aprendiz. Isto quer dizer que antes de desferir o golpe, cabe tocar a testa, morada do terceiro olho ou da consciência, a fim de despertar a mesma.
O Malho também representa a inteligência perseverante, que anima o pensamento silencioso e meditativo acerca da obra, e a vontade, a energia que ativamente penetra a matéria da consciência, necessária para encerrar os vícios em masmorras definitivas. No entanto, não deve ser tratado como uma massa bruta e inerte, mas a plena representação da vontade imaterial, que é sempre firme e perseverante.
O homem precisa de um instrumento para aplicar a sua vontade sobre a obra. Daí o papel do Cinzel (do latim cisellus, derivado do latim, coesellus, de coedere, cortar), é o instrumento intermediário da vontade espiritual que induz ao discernimento, ao bom senso e a agudeza intelectual necessária para desvelar as sutilezas da personalidade, que contribuem para o autoengano e o consequente falseamento da ascensão espiritual. Sem a intervenção do Malho, o Cinzel torna-se inútil, vão e até perigoso, pois não possui uma vontade consciente o dirigindo. Cabe à vontade ativa agir, por intermédio da mão direita ativa e atuante. O Cinzel é o princípio intermediário entre a vontade ativa e o efetivo trabalho que penetra e modifica a pedra bruta, sendo esta última o princípio passivo. É a manifestação da vontade plasmadora no mundo das formas, como raio descendente na árvore da vida que se desdobra desde a coroa criadora até o reino material. O Cinzel deverá manter-se sempre amolado, isto é, cabe ao Aprendiz manter sempre em constante aperfeiçoamento os conhecimentos adquiridos, pois o esquecimento é um adversário perigoso.
Malho e Cinzel também podem ser relacionados a dualidade cósmica ativa e passiva que é uma das Leis fundamentais da natureza, presente em todo o universo. Ragon escreve que “o Malho é o emblema do trabalho e da força material, ajuda a derrubar obstáculos e a superar as dificuldades. O Cinzel é o emblema da Escultura, da Arquitetura e das Belas Artes: seu uso seria quase nulo sem o concurso do Malho. Do ponto de vista intelectual eles concorrem para um mesmo objetivo; o Malho, emblema da lógica, sem a qual não podemos raciocinar corretamente, e que não pode ser dispensada por nenhuma ciência, precisa do Cinzel, que é a imagem da causticidade dos argumentos com os quais conseguimos destruir os sofismas do erro. Disso resulta que esses símbolos representam as Belas- Artes e várias profissões industriais, e a lógica, elementos próprios para tornar o homem independente”.
Segundo Oswald Wirth: “dois instrumentos são inseparáveis (para talhar a Pedra bruta). O primeiro representa as soluções aprisionadas em nosso espírito: é o Cinzel de aço, que é aplicado sobre a Pedra, seguro pela mão esquerda, lado passivo, que corresponde à receptividade intelectual, ao discernimento especulativo. O outro representa a vontade que executa: é o Malho, insígnia do comando, que a mão direita, o lado ativo, brande, e está relacionado com a energia que age e com a determinação moral, cujo resultado é a realização prática”.
Malho e Cinzel agem juntos e de forma descontinua. Entre uma e outra aplicação das ferramentas sobre a Pedra Bruta cabe uma pausa necessária a reflexão acerca do aprendizado adquirido. Toda caminhada se processa em ciclos de avanço e pausa. A constância e a temperança são virtudes irmãs e todo Aprendiz deve respeitar o seu próprio tempo e processo interno.
Cabe também observar que alguns ritos associam ainda a régua de vinte e quatro polegadas ao trabalho do Aprendiz. A régua é símbolo de precisão e exatidão, e expressa a necessidade de se observar as práticas virtuosas nas vinte e quatro horas do dia. É a lembrança de que o Aprendiz deve ter a consciência e a atitude maçônica presente em todos os seus atos.
O Maçom começa sua caminhada como Aprendiz e prossegue nesta mesma pedagogia de autoaprendizado por todo o seu caminho nos graus subsequentes. A jornada é a mesma do herói mitológico que sai de sua zona de conforto e desce pelos caminhos desconhecidos de sua própria personalidade, trabalhando no Sacro Ofício (ou sacrifício) de dominar seu ego e suas paixões, enquanto trava batalhas internas pela conquista de si mesmo, da mítica Jerusalém Celeste onde haverá de construir o sagrado Templo Interno. Será vitorioso, quando ao final, após inúmeras lições, reencontrar a sua própria e imortal essência divina, o verdadeiro ouro filosófico.